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quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O Misterio de Mabila

Todos os quatro estavam jogados num canto, segurando seus poucos pertences. Alguns se agarravam a bolsas, outros a crucifixos, mas Mabila nao tinha a que se agarrar, senao ao rosto imovel do Cristo. A face rigida e inabalavel diante do sofrimento, causa de tantos horrores na infancia, parecia bastante compreensivel naquele instante. Lentamente, afastou-se do grupo e se pos diante do crucificado. A coroa lhe tirava sangue da cabeça, os pregos dos membros, todo seu corpo um martirio sob a pouca luz de velas. Brigida percebeu o sorriso que se formava no rosto de Mabila, enquanto ela tocava os pes da figura, e cutucou Estevao com violencia.

- Esta perdendo a razao...

Estevao sentia carinho por Mabila, uma coisa que lhe esquentava o peito toda vez que a via distante, como uma obra de arte ambulante da qual se espera ficar mais tempo ao lado. Sentiu vontade de intervir, mas acabou refem dos gestos que a mulher oferecia ao idolo prostrado. Mabila soltou os cabelos, fechou os olhos e se deixou abraçar pela vontade de envolver nos braços o material gelado daquela escultura. Algumas lagrimas banharam os dedos comidos pelo tato de terceiros, inumeraveis contatos que sulcaram meios para o gotejar cristalino de uma despedida. Ele sentiu no peito aquele fogo rugir afiado, deixou Brigida e Ramil pra tras e se colocou no caminho traçado pelos olhos de Mabila.

- O que voce esta achando que vai fazer?

- Estevao, por favor...

- Por favor, o que? Eles pegaram o Chip, nao tem nem dez minutos. Voce viu o que aconteceu. Ta ficando maluca? Se eu precisar, vou te colocar amarrada no altar!

Mabila entendia, porque tinha ficado muito claro o que se passava. Seu corpo estava sensivel e aquela paixao desmedida lhe feria o espinhaço. Procurou as maos de Estevao, que as negou de prontidao. Ele sabia que cada gesto se tratava de um adeus. Seu rosto se deformou em sofrimento, as lagrimas nao foram contidas, o corpo caiu em tamanho cansaço e falta de perspectiva. Mabila passou por ele, nao sem antes lhe beijar a cabeça, no topo, onde antes era fragil infancia. 

- Nao se deixe enganar.

Quando fechou as portas atras de si, colocando os amigos em segurança, viu que uma imensa horda de demonios babava a sua espera. Um deles se destacou, belo feito o mortal mais cobiçado de seu tempo na escola, com as cores e formas feitas por um capricho sem precedentes. Ele sorriu, mostrando os dentes perolados.

- Finalmente, mais um desistente. 

- Era isso que voce queria? - ela quis saber, apontando para o proprio corpo.

- Claro, claro, querida, mas, acredite, tem mais do que isso pra mim dentro de voce.

- Mentira.

Ele cerrou os olhos. 

- Como?

- A unica coisa que voce pode ter de mim esta diante de voce. Meu corpo. Mais do que isso, nao pode ser seu. 

- Vou devorar sua alma como se faz com uma fruta madura.

- Impossivel.

- Como?

- Exatamente. Minha alma nao pertence a ninguem. Caso isso fosse possivel, a vida seria uma simples questao de fugir eternamente da sua presen
ça. Isso colocaria em perspectiva a soberania da Criaçao e o poder infinito do Ser. Nao ha nada alem de vida apos esta grossa materia rigida e ate a tua presença nada mais representa que o medo ja sobrepujado em mim. Porque Eu sou o Ser e o Ser é tudo que ha.




Mabila viu tudo desaparecer em pura luz e a partir dali nao se viu mais em si. Brigida viu Mabila ser devorada e quase perdeu os sentidos, caindo sobre as proprias pernas. Ramil estava paralisado, os olhos fixos no cenario onde os demonios se acalmavam, depois de ter desaparecido qualquer sinal da mulher. Brigida arrastava os olhos pelo chao, sentia que vomitar era o mais sabio, mas resistia, ate parar no rosto de Estevao, que olhava o Cristo de boca aberta. Ela avançou sobre ele, sacudindo o corpo com as maos tremulas.

- O que foi!? O que foi, agora!? Hein!?

- Nada, eu nao sei, parecia...

- Parecia o que? Parecia o que!? - ela quis saber, jogando o corpo pra tras, indo ate o Cristo com a violencia de quem quer destrui-lo, for
çando-o para fora da parede ate que sua imagem caisse e quebrasse.

- Parecia que ele estava me olhando. 





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