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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Um lance pra se contar a alguém



                Ela nasceu pra sofrer. Tadinha. A mãe, quando viu, deu um suspiro. Tinha um pouco de alegria, muito de admiração, um medo de leve. Tudo junto, pra ela, era o mesmo que uma coisa só: a primeira impressão absoluta da maternidade. Não tinha nem como saber, ao certo, tudo aquilo que eu ali falei. Mas tava lá, nela, lá dentro daquele corpanzil recém-castigado pela saída forçosa de um apêndice emancipado. E que coisa mais linda este pedaço parido de carne almada. 

                Assim, conforme o tempo passava, a cada miserável dia na terra, a cada rodopio afetado do planeta, a bicha ficava mais e mais bonita. Os parentes não conseguiam esconder os olhos dentro da cara. Faltavam deixar os pares nas cadeiras pra irem ao banheiro. Dona Iolanda, que é a mãe, cujo nome só me veio à cabeça agora, pra ser muito sincero, ficava mais e mais preocupada. Até o pai, ô desgraça, de vez em quando ela via, metia os olhos na filha. Era uma lindeza que não tinha par naquele lugar. 



                Você sai na rua e vê árvore, vê asfalto, vê bicho, vê carro, é tanta coisa pra ver, mas quando você chega na Rua das Alpacas Pardas, ali é que você pára e fica parado, derrubado das tuas raízes, abismado, completamente, de cabeça, naquela figura que parece uma sobremesa de gente. O nome dela? Não me recordo agora, mas já, já lembrarei. É alguma coisa como Úrsula, mas não é, entende? Tem uma força, mas não tem peso. Já, já eu me lembro. Acho que é Lívia, ou Marília. E tem alguma pompa em Marília? Nossa, que dificuldade. Bom, vamos chegar a um acordo, aqui, nós que estamos interessados em saber o nome desta menina, cuja beleza é um fogo que arde pra se ver: Amanda.

                 Acontece que Amanda cresceu, chegou à adolescência com um corpo de fazer crer o mais cético na geometria e proporções divinas. Não tinha feito ainda dezesseis anos, e justamente por estar debutando, foi às provas dos vestidos pra festa. Correu do provador, mal tinha fechado o fecho do sutiã, porque a gerente faminta não soube controlar as mãos. Passou aperto na volta da casa da amiga, certa vez, quando resolveu cortar caminho pela obra. Quase sai nua. Numa outra, foi o pai desta mesma amiga, que não tendo sido surpreendido pela volta da mulher, teria descabaçado a pobre na cama do casal. O professor particular, o instrutor de natação, a mulher da cantina, os motoristas, balconistas, jornaleiros, vizinhos e toda a sorte de gente que passava mais de dez minutos do lado da infeliz. 



                Passou um bom tempo trancada em casa, no quarto, mal saindo pra ir ao banheiro e resolver outras necessidades urgentes. Não ficou muito, percebendo que os irmãos a observavam pelas frestas e buracos. O pai buscou carinhos mais íntimos na décima noite depois da festa de São Duish. Foi uma choradeira, quebradeira de prato, louça, foi ralho, foi peia, foi muita aporrinhação, que deu na saída da menina de casa. Meteu uma mochila nas costas e saiu, com umas mudas de roupa, os trocados na carteira e a obstinação de quem quer se livrar dos encostos.



                Amandinha morreu atrás de um hábito. Seu corpo amadureceu coberto por tecidos pesados, muro inabalável que escondia os tesouros mais raros da terra. Fez questão de espalhar entre as irmãs, com muita cautela e capricho, que possuía uma deformação bizarra. A imaginação das enclausuradas deu cabo do resto. Em pouco tempo, cogitava-se que a irmã Alita tinha uma enorme verruga escura e peluda embaixo de um dos seios, que não tinha este seio, que era monoteta, sim. Outros, que tinha uma enorme cicatriz de um pós-operatório sinistro. Toda uma sorte de fantasmas encobriu a vida da irmã Alita, da pequena Amanda, trancafiada em seu corpo maduro, que depois de murcho continuou recluso, até que a morte lhe privou da privacidade e, para o assombro de uns tantos jovens curiosos, revelou não haver nenhuma deformidade ou estranheza. Dizem que o legista demorou horas a fio com ela, lá dentro.

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