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sábado, 10 de julho de 2010

trecho do romance "Sede" de Castr'Antonio

     Franco deixou o paletó sobre a cadeira, caminhando, em seguida, até a janela que dava para as costas de uma fábrica velha de móveis. Aos olhos de Lavínia, transformava-se sutil e constantemente, como se pudesse tirar e vestir as máscaras de uma personalidade camaleônica com extrema naturalidade, e quem lhe diria incapaz? Tinha pouco menos de um metro e noventa, uma cabeça chamativa, onde os cabelos pareciam mais ralos no centro anterior, ombros alinhados e sapatos italianos nos pés dez pras duas. 
     Olhava a parede amarela encardida, com rachaduras e talhos na superfície, banhada pelo chuvisco que repentinamente adornou a cidade. Lavínia encheu os pulmões de ar. Os lábios lhe tremiam, seu coração era uma bomba à toda e muita energia fazia o rosto formigar da mais pura tensão. E se fez calada? Não, porque poucas vezes em sua vida tinha desistido de algo por conta de sintomas de um choque, uma tensão que alimentava seus desejos mais profundos por desafios.
   
— Você vai me matar? - disse-lhe, fixando os olhos duros na nuca do homem.
—  Sim, eu vou.

     O corpo de Lavínia sentiu o impacto da frieza que revestia as palavras de Franco. Um peso, o estômago se revirando, agulhadas na cabeça que se traduziram em lágrimas silenciosas, contidas em um ódio que aos poucos se alimentava de toda a dor. Franco deu um ligeiro sorriso, enquanto uma lagartixa corria pela parede na direção do telhado.

— Como?
— Como? - ele repetiu.

     Franco se virou para olhar a figura vencida. Os cabelos cobriam seu semblante, mas a voz era perfeitamente audível, entendera bem aquela palavra, "como", mas precisava ouvi-la novamente, tinha de ter certeza que não fora puramente instintivo, mas uma obra da mente tocada pela serpente, pela asa negra do amor.

— Vou rasgar sua carótida e beber todo o sangue que puder, até estar satisfeito.
— rs... é mesmo? E você é o quê, um vampiro pós-moderno?

     Aproximou-se, mirado pelas circunferências amendoadas que refletiam sua figura. Ela tinha o rosto expressivo, rejeitando a robustez que normalmente dá às mulheres um ar maternal Os lábios eram finos, sugeriam crueldade no sorriso repleto de dentes perolados. Lembrava-lhe a mulher que com ele deixara a Alemanha para morar em Kuybyshev, às margens do Volga. Puxou uma cadeira e sentou-se para melhor observar seu objeto, que lhe dava sonoros sinais de apreensão.

— Esqueça os romances que já leu sobre nós, Lavínia. A maioria diluiu a verdadeira essência.
— E qual é ela?
— Uma última história antes de morrer?
— Vocês não oferecem nenhuma cordialidade, então?
— Imagine, faço questão.

     Como era fascinante aquela postura. Diante do abismo, oferecia a dúvida. Uma mulher que lhe instigava a uma civilidade muita vez dispensada, dispensável, já que a presa não exige, geralmente, qualquer troca. Pensava que deveria empalhá-la depois de se alimentar, para que fosse memória artística de uma experiência rara. Queria olhar para ela e deleitar-se com os ecos do agora.

— Os romances sobre nós procuram origem em eventos da humanidade cristã, ou então na guerra entre deuses que representam, símbolos de uma comunicação. Alguns são interessantes, mas devo confessar que a nova safra é muito vexaminosa. Como podem escrever sobre nós como andarilhos das manhãs? Como nos pintam capazes de reproduzir vida? É preciso que alguém desfaça essa tendência estúpida de nos humanizar, porque acredite, estamos muito longe disso.

— E você quer que eu escreva este livro, não é? - disse, sentindo o rosto encher de calor.
— Bem que você gostaria, não? Mas, não, não vai escrever o livro. Como disse, vou tomá-la em goles inesquecíveis. O livro será escrito por outro, alguém que prepara seu debut com afinco, neste momento.
   
    Ela afastou os olhos, mirando o assoalho. Ele molhou os lábios, queria ir em frente.

— Gosto de uma estória que ouvi sobre nós, certa vez, enquanto me preparava para penetrar as muralhas de uma pequena fortaleza ao sul da França, onde uma jovem de beleza extremamente rara morava com sua mãe, um tio e as empregadas. Era como uma jóia cercada de cães escaldados, sempre vigiando, sempre de prontidão, mas ainda caninos eram seus atos e eu bem sei como lidar com esses animais desde a infância, pois já tive uma, claro.
     Bom, certa noite me aproximei dos guardas, queria observar sua postura, sentir o que exalavam e compreender a maneira mais fácil de sobrepor suas armas. Foi quando ouvi a estória. Falavam sobre o que ouviam desde meninos, e um deles começou a narrar sua versão de nosso surgimento

     Minha mãe sempre me contou que os vampiros eram filhos do diabo. Isso aí que você disse eu não conheço, não, mas todo o povo de onde venho crê que essas pragas são as crianças de Satanás. Porque, veja bem, nosso Senhor, Jesus Cristo, era homem perseguido por muitos demônios, inclusive o próprio, só que eles não lhe podiam fazer nada além de tentar, fosse pela falta, fosse pelo medo, estavam sempre tentando, só que não tinha como atacar aquela figura tão iluminada.
     Um dia, bem sabe você que Jesus foi com seus discípulos até o Monte das Oliveiras, ao Getsêmani, um jardim muito bonito. Lá ele teve a revelação de seu destino, na noite anterior à crucificação. Ali, meu amigo, deu-se um martírio e esse foi o Pai de todos os vampiros.

— Como assim?
— O martírio a que se referia é o fenômeno do suor sanguíneo. Cristo teria passado por tamanha angústia, que a violência do trauma fez com que sangue fosse secretado pelas glândulas sudoríparas.
— E vocês vieram atrás deste sangue...
— Não, ainda não éramos "nós", mas como lhe disse, o diabo estava à espreita.

     Lúcifer vigiava os passos de Cristo, noite e dia. Tentava-lhe com pesadelhos que o filho de Deus desfazia com um gesto. Mandava-lhe animais peçonhentos que diante de si tornavam-se de estimação. Nada parecia perturbar o equilíbrio de Emmanuel.
     Quando o sangue Dele caiu sobre a grama do jardim, o demônio, imediatamente sentiu-se invadido pelo desejo, coisa que compartilhamos você e eu, também. Só que ao caído não era possível chegar àquela seiva ímpar, ainda que tivesse buscado todas as maneiras. Sentiu Lúcifer a verdadeira sede, uma aridez que lhe castigava, açoites seguidos de um desejo inatingível.
     Foi ao vilarejo mais próximo e buscou nos homens de Deus a sua nutrição, mas todos estavam fora de seu alcance. O demônio estremecia a cada passo e a cada recusa seu corpo se arrastava mais pesadamente sobre a terra, até sumir em escuridão. Despertou com as palavras de três homens, "nós negamos Cristo", eles diziam em claro e bom som. Lúcifer reuniu suas forças e espreitou o lugar onde os romanos da guarda estavam interpelando os rapazes.

E eles foram as primeiras vítimas...
— Sim, foram eles. Lúcifer ficou furioso quando percebeu que a sede que sentia jamais o abandonaria, não importa quanto sangue buscasse na face da Terra. Foi então que ele atirou, sobre os homens que negaram Cristo, sua sentença. Animou os corpos, soprando-lhes o fôlego que a morte desviava da matéria, mas não lhes restituiu a vida. Viveriam, a partir dali, movidos pela sede, insaciável busca, motor para todos os passos no futuro.
— E você acredita nisso?
— Tanto quanto se pode acreditar no próprio Deus.
— Agora, você vai me matar?
— Sim.
— Pai nosso que estás no céu, santificado seja o Vosso nome...
— O telefone para o qual você ligou está desligado ou fora da área de cobertura, tente mais tarde - ele disse, a voz projetada com alguma agudeza. Lavínia, vamos, não faça isso. Não vai conseguir ajuda.
— Ajuda? Estou apenas acertando minhas contas, seu imbecil.
— Veja, escute-me, esqueça seu Deus um pouco e me dê atenção. Tenho uma proposta a lhe fazer...

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