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domingo, 11 de julho de 2010

Estória para Ravi

     Certo dia, passava pela estrada uma única família de crianças, todas de mãos dadas, porque eramos filhos da Casa dos Antoninos. Tomaram o rumo do mundo juntos e todos os dias compartilhavam as experiências que tinham do caminho, se a pedra lascada podia tirar um talho da sola do pé, se o ovo cru do pássaro forrava o estômago direito, se as galinhas podiam prever a chuva que vinha surgindo.
      Um velho risonho, de gestos macaqueados, apareceu num determinado ponto da jornada, contando piadas, fazendo os outros rirem todos muito sutilmente, coisa que se esconde com alguma educação, no entanto, estavam todos alegres com o fato e dançavam, famílias e famílias, cruzando os braços, menos uma das crianças, a que tinha escutado tudo com estômago de cera, avesso às hulhas acesas da alegria. Azedo, afastou-se em direção oposta, mas tudo parecia contagiado pelas faíscas do espetáculo. "Um espelho", disse o velho, "é meu presente de aniversário".
      O jovem apanhou o presente e se viu refletido ali, mas por pouco tempo, já que a face luminosa do objeto se tornou escura, tão densa que parecia ter profundidade. Encostou o rosto na superfície e sentiu que a massa negra moldava seu rosto com toques mornos e úmidos de mãos ternas. Poderia ficar ali por uma eternidade, mas sentiu que seu corpo despencava, então recuou o bastante para ver que a cara ficara marcada na massa estanque, máscara rara de um instante que agora latejava no caminho, feito qualquer fruta no pé do quintal alheio, feito bicho solto, ninho.
     Juntou-se às outras crianças e seguiu, deixando no chão o espelho do velho. O homem o pegou com satisfação e levou para casa, onde guarda tantos outros que foram deixados aos seus pés já cansados de guerra. Depositou sobre a parede o espelho verde, onde se refletia a criança doce que agora ganhava a estrada, mas que voltaria para ver o filho que deixara nas mãos do velho Vittio.
     Deu-se assim, que quando todos já eram mais velhos, viram-se diante de um desejo daquele menino, agora como eles homem feito: queria voltar para ver a criança do espelho. Sonhava que a deixara chorando, que principalmente agora precisava dele, chamava em desespero, era filho de um instante do nome, seu nome, como poderia se negar a atender seus desejos? E o grupo decidiu que esperaria pelo retorno, para que então prosseguissem com a viagem.
      Tem sido assim, desde então, quando chora a criança. A família se lança ao acostamento, levanta acampamento sobre o céu revolto, aguardando pelo retorno do irmão que parte rumo à casa do velho Vittio, onde mora a lembrança viva que lhe chama pelo nome, que lhe convida a sentar e olhar mais uma vez para o horizonte escuro dentro do espelho e ali permanecia por vários dias.
      No entanto, o sol se levanta todas as manhãs para alimentar as ocasiões, encher o acaso de cores vívidas e no fim do dia deixá-las ao cinza, ao escuro que viça não mais pelo fogo de suas entranhas, mas nos olhares oblíquos das estrelas filhas. Por isso cada dia é uma glória significativa, não uma benção do estrato alto, divinaria, mas opera do caos currado que é a vida, esse palco onde os espetáculos acontecem ao mesmo tempo no espaço.

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