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sábado, 17 de abril de 2010

o beijo do dragão em flor

            Era um dia qualquer, como todos os dias em que esperava, ansioso por uma resolução, por ela. O cinza permanecia cinza, mudo, passando tão lentamente que não divisava vestígios de tempo na cara dura. Nem dormira ainda, estando a vagar pelas ideias por todo o tempo da noite, momento em que fervilham os pensamentos dentro da cabeça arejada pelo silêncio dos sonhos alheios. Então, eu o vi.
           Era uma coisa tão pequena, frágil, que ao dialogar com meus sentidos trouxe, de imediato, uma sensação poderosa de fragilidade. A natureza sabe bem o que faz. Senti, como num raio, que podia destruir aquela pobre vida de tantas maneiras, mas por que o faria? Não conseguia achar razões para acabar com aquela figurinha que voava debilmente pelo quarto. E por que não o faria? Porque suas cores, seu olhar inquieto, sua vinda inesperada, tudo isso enchia o cenário de uma energia que não fazia convites de morte. Dei-lhe água com açúcar. Não sei se chegou a beber, caí no sono um pouco depois, com o beija-flor hospedado junto ao Marlon Brando.
          Faz algum tempo que o beija-flor se foi. Trouxe, provavelmente, um beijo que não virá mais. Então, dia desses, veio o Dragão.
          Tinha a pele escamada de cor preta, reluzente, às vezes, penso, fosse um azul tão escuro que de vez em quando dava ideias de safira, por conta de um raio de luz ou outro. Sobrevoava a casa, rondando as pessoas que tentavam se proteger nos espaços ainda telhados. Pelos buracos víamos suas grandes asas cheias de linhas claras, como pequenas estradas onde em procissão vagavam as almas das vítimas mortas pela fera.
          Ele ainda ronda minha casa, mas não desconfia que agora minha alma é fria e que ao devorar minha carne, minha dor fará de suas entranhas um inferno de neve e sombra. Guardo cristais que vão enfeitar as paredes úmidas, o chão sem firmeza vai se tornar duro sob meus pés e gloriosamente deixarei o cativeiro um tempo depois, quando ressequido ele vomitar a indigesta experiência de me envolver, mergulhado no profundo silêncio do esquecimento.

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