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quarta-feira, 28 de abril de 2010

Aparição: A saga de Paishu

     Quando Costeau entrou na sala, senti que sua presença era perturbada por uma emoção tão intensa que indescritível. As paredes eram banhadas em euforia, nítidas sensações de que havia pouco tempo orbitavam ao redor da aparição, com seus olhos grandes injetados nos meus ainda sonolentos. Já o aguardava, no entanto, porque a noite passada fora bastante reveladora.
     Laissez Costeau começou suas visitas quando eu tinha apenas dez anos de idade, sob o pretexto de que poderia ajudá-lo a resolver problemas pendentes nesta vida. Aos poucos, iniciamos uma convivência que se estende até os dias de hoje, cheias de conversa, de lições, descobertas e pensamentos soltos. A luz nunca chegava e parece que se lhe acabam as forças, pouco a pouco.
     Ontem, quando fui a meditar, deixei que as minhas reflexões avaliassem tudo que me havia dito até ali, todas as estórias e os exemplos, todo ensinamento que me havia passado com relação ao mundo que habitava e sobre este, que deixara há muito tempo. Pensei sobre a hierarquia, sobre a linearidade, sobre as exigências feitas em nome da aceitação, sobre como tudo aquilo era uma grande fadiga sobre o espírito.
     Então, imaginei que, em verdade, aquele plano tivesse sido organizado, de fato, por pioneiros que se estabeleceram como sociedade. Senti um arrepio frio subir da base da coluna até a nuca, meus pêlos eriçaram que cheguei a rir da situação. Não o fiz por desconsiderar meus vislumbres, mas pelo simples fato de que sentia em cada pedaço deste território de carne uma devastadora certeza. Era por isso que ele me procurava agora.
     "Você chegou onde imaginei que pudesse", ele me disse. "Por anos ao seu lado, acreditei que a tua mente fosse perceber os problemas no cenário, que os frutos fictos não eram capazes de saciar a tua fome, que o teu passo te levaria à mata fechada e que não restaria ao teu orgulho nenhuma outra possibilidade além da trilha que precisa abrir com as próprias mãos. Conquistou uma liberdade. O canal estabelecido pela tua iluminação me permite falar sem que nos ouçam, porque para aquele que ignora não é possível conhecer os privilégios da comunicação. Se antes vivia na escuridão do não-saber, já tinha contigo a desconfiança, fato que o trouxe para fora da redoma e agora lhe coloca diante de outra realidade".
     O que Costeau me explicou levou horas. Falava com prazer, fazia questão de explicar as passagens mais obscuras. Do que se tratava: antes, quando apenas a ignorância reinava, o Homem estava condenado a expirar, como todas as coisas vivas. Porém, um tal Paishu, que alguns dizem ser homem, mas que outros afirmam ter sido uma jovem, que por toda a vida se dedicou à autoreflexão, ao conhecimento e reconhecimento de si, avaliando as raízes de suas motivações e propósitos, convivendo com seus semelhantes e inventando outros, correndo pelos campos e sobre as tintas de pintar tecido, conseguiu dominar seu espírito e nasceu a primeira morte.
     Não se pode afirmar o que aconteceu, apenas especula-se que Paishu vagou anos a fio por estas terras, solitário, incomunicável, vendo a matéria ignorar sua originalidade. Mas persistente, descobriu que a força do espírito também se dilatava conforme exercício. Praticou, por anos mortais ele praticou nas florestas, das naturezas mais amenas às bestas mais feras, nada Paishu deixou passar à palma. Pode, assim, continuar sua jornada. Aos poucos, entrava em contato com os homens e os arrebanhava.
     Não demorou para que suas influências fizessem de outras pessoas capazes de realizar a passagem. A morte se tornou um ritual e, pouco a pouco, chegavam os homens e mulheres sem rumo, vivendo em bandos procurando entender. Paishu, no entanto, já entendia. Não havia nada ali a priori, mas tudo ansiava por ser. Nasceu, assim, Paraish, a cidade dos espíritos, onde o líder era aquele que sempre esteve ali. E por que sempre? Porque antes de qualquer registro ele estava ali, não podendo ser contestado pelo espírito mais velho do lugar. Todos conheciam Paishu e ninguém sabia nada que existira antes dele. Aceitaram-no como seu líder por crer que nada lhe escapava ao entendimento. E não se enganavam.
      O sábio preparou seus semelhantes para a chegada constante de novos cidadãos. Conforme expandia seu poder sobre a terra, Paishu conseguia encher as muralhas de Paraish, que estavam em constante expansão. Até que, um dia, quando refletia sobre sua força entre os vivos, ouviu um grito horrível que se propagou por todos os cantos da cidade. Correu até a janela de seus aposentos e vislumbrou a cena mais terrível de toda sua existência: Mahatza, o espírito solitário de uma jovem, tornara-se estável, as revoluções pararam, sua rigidez quedou fraca e se dissipou em meio aos horrorizados olhares. Um forte clarão marcou seu desaparecimento completo, um traço de luz que aos poucos foi se apagando.
     O caos se alastrou e os espíritos se puseram em comoção. Paraish estremecia, mas seu idealizador, que via e ouvia da janela da torre, tinha já uma ideia.

(continua)

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