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quarta-feira, 2 de junho de 2010

carta deixada no bolso do meu casaco

     Creio na criança encardida na sarjeta. Meus olhos me dizem: ali, ela está. Meu corpo pode tentar negar a respeito, mas é impossível dizer que meus olhos não falam do mal. Meus dentes trincam de desejo, uma fome que tarda nos medos, nas alucinações dos perigos que escondem por lá, e a trama seguindo cortejo, retarda minha poesia, faz sonhos parecerem mistérios, derivados de alguma fantasia boba, tudo que é pra ser desperto morre no silêncio. Depois da puberdade, a sujidade.
     Deixem as crianças. Deixem que as crianças sejam. Tem gente que tem problema de pé, tem gente que não tem jeito, mesmo. Em todo lugar, o que vejo é a explosão do desejo, homens que medem mulheres, que medem os mesmos e mandam voltar, pra que terceiros possam aparecer no meio, caso as primeiras opções sejam mal sucedidas e a partida demande uma substituição de última hora. Muralhas de experiências mal sucedidas ficam aos mais novos para que as sobreponham, sem fé nem apoio, muita vez, e pra quê todo esse monturo de desespero acumulado? Que ganham eles com todo esse eco do passado fazendo obstáculo para um mundo menos ordinário?
     Fora isso, creio na liberdade de se aprisionar, de escolher o cárcere, de querer ter túneis de comunicação para falar às massas, acredito na felicidade que é compartilhada, pra que cada momento só seja um milênio de pura imaginação, vivência de si e mais nada, um salto no céu da boca pra cair no escuro do mundo, onde as imagens são mudas e cheiram a nada, mas tem cores ferozes e deixam marcas na pele. Voltar menos fera por ter vencido a escuridão da interioridade, ser luz por morder cada pedaço de pão e em cada gole d'água pensar no quanto é muito aquele pouco, queimar de necessidade e em vão, só pra voltar mais criança, com mais ânimo pra fazer arte. Creio na tentação, no nexo e nas indisposições, sou adepto do amor até nas escoriações, porque de tanto amar é que se odeia, e de tanto ódio é que se nutrem verdadeiras paixões. Deixe que sejam.

Um comentário:

Flávio Morgado disse...

Gostei. A poesia não precisa ser em poema. Percebe-se isso em teu cuidado com as rimas, as aliterações presentes no texto.
Ainda que fosse só isso, já mereceria um valor, mas a idéia também está legal.

F.M.